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Guerra cultural e pandemia

A pandemia tornou mais visível a colisão entre o modelo capitalista neoliberal, sua rede de dogmas, ícones e paradigmas, e outras alternativas de conceber a sociedade, a economia, a política e a própria ideia do progresso e a felicidade.

Autor: Abel Prieto | informacion@granmai.cu

Junho, 2020

Foto: NUEVA SOCIEDAD.

 

A pandemia confrontou o modelo capitalista neoliberal com outras alternativas de conceber a sociedade.

O neoliberalismo tornou-se legítimo sempre através da indústria cultural. Tem sido muito útil o estereótipo do paladino ianque, capaz de sair vitorioso das emboscadas dos seus inimigos, de aniquilá-los e levar depois com ele o butim e a garota mais bela.

Esse Triunfador, que sabe o que quer e que vai obtê-lo a todo o custo, cercado de cadáveres de Perdedores, é o herói «civilizador» por excelência da fábula neoliberal.

No lado oposto estão os Bárbaros: criaturas traiçoeiras, inferiores, árabes, russos, asiáticos, afro-americanos. Embora, às vezes, o Triunfador seja de pele negra, porque a indústria quer enganar também esse sector da população. E até um dia surgiu dos seus laboratórios o par perfeito de Heróis inseparáveis, um branco e o outro negro.

A maquinaria cultural propôs-se que ninguém suspeitasse que havia um outro jeito de organizar a sociedade e de imaginar a existência. A maioria das vítimas acreditou na fábula. Apesar de que sobrevivessem em choupanas infestadas, e não pudessem pagar a educação dos seus filhos, nem os serviços da Saúde, os únicos culpados disso eram eles próprios, por serem «fracassados», jamais o sistema. Na floresta, os fortes engolem os pequenos e os fracos.

Mas a pandemia chegou, toda a crueldade do sistema veio à baila, de uma forma obscena, impossível de ocultar, e «líderes da extrema direita», como Trump e Bolsonaro estão com problemas. Somente conhecem a moral da floresta, não contam com um sistema público de Saúde e a indústria farmacêutica está desenhada para ganhar dinheiro e não para enfrentar uma emergência sanitária.

O espectáculo de milhares e milhares de doentes sem receber atendimento, e milhares e milhares de mortos abalou muitas pessoas. O isolamento implicou, além disso, uma pausa para que as pessoas sensíveis pensassem no próximo, na sociedade, no planeta.

Há uns dias, circulou uma mensagem de Juliette Binoche, Barbra Streisand, Pedro Almodóvar, Robert De Niro e outras figuras muito mediáticas do cinema e do espectáculo. Elas sugerem avaliar o senso da existência e a catástrofe ecológica que se aproxima. É preciso começar «com uma profunda revisão dos nossos objectivos, valores e economias». É uma questão de sobrevivência, dizem:

«A busca do consumismo e a obsessão pela produtividade levou-nos a negar o próprio valor da vida (…) a poluição, as mudanças climáticas e a destruição das nossas restantes zonas naturais levou o mundo a um ponto de ruptura. Por estas razões, junto a outras crescentes desigualdades sociais, acreditamos que é impensável, “voltar à normalidade”»

Também foi anunciada a Internacional Progressista, com Noam Chomsky, Naomi Klein, Arhundati Roy e outros intelectuais e políticos de muito prestígio, como o ex-presidente equatoriano Rafael Correa e Fernando Haddad.

Graziella Pogolotti definiu as plataformas ideológicas a partir das quais se faz a exigência de outro mundo, não só «possível» mas imprescindível: «Algumas têm um interesse ecologista, outras têm uma trajectória de esquerda mais radical». Para Graziella Pogolotti, acabar com as agressões contra Cuba e a Venezuela, cancelar a dívida externa, instaurar uma nova ordem internacional da informação e lutar contra as mudanças climáticas devem fazer parte da agenda. «Fidel (lembra-nos) dedicou à ameaça da extinção da espécie humana a batalha dos seus últimos anos».

Leonardo Boff percebe na pandemia uma resposta de «nossa Casa comum» à investida dos seres humanos. O mito moderno de que somos «o pequeno Deus» na Terra e de que podemos dispor dela ao nosso prazer, porque é inerte e sem propósito, foi derrubado. Temo-la tratado «com uma fúria sem precedentes». Daí que ela «contra-atacasse com uma arma poderosa: o coronavírus».

Frei Betto refere-se ao impacto do vírus no mercado financeiro: «as acções das bolsas de valores do mundo perderam US$ 15,5 bilhões. Alguns desses especuladores e megainvestidores  afectados nos seus bolsos (a parte mais sensível do corpo humano) terão ficado mais pobres? E, contudo, antes da pandemia, quase todos eles se recusavam a dar sua contribuição para a tomada de medidas para combater a fome e o aquecimento global».

Quer dizer, o problema existe desde antes. Está na essência do sistema, nas corporações e nos políticos que as representam.

William Ospina meditou acerca das lições de humildade que deixa a pandemia: «Depois de séculos de estarmos a guardar os nossos conhecimentos, de valorizar o nosso talento, de venerar nossa audácia, de adorar nossa força, chegou a hora em que nos cabe ponderar a nossa fragilidade».

Os super-heróis de Hollywood nunca se sentiram frágeis. Naturalmente, será preciso ver como vai acabar este filme. •

 

 

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